segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

esta manhã

Começa a dar na rádio...




... o 13 seguia algures na Avenida de Ceuta.
 No livro que segurava no colo lia:
" ...Ela levantou-se, tirou uma nota de dólar da mala, dirigiu-se à jukebox e premiu uma série de botões, obviamente a "sua"música. Esperei que ela voltasse para a nossa mesa e acabasse a sua bebida, mas ela permaneceu junto da jukebox como se a examinar a lista de músicas. A música começou, era um tango. As palavras roucas da canção lançaram-me um feitiço assim que as ouvi. Erguem-se da imobilidade de fim de noite no bar quase vazio, como um cobertor de lã a ser desdobrado numa noite fria... Clara conhecia a letra, e antes que eu me apercebesse do que estava a acontecer ou tivesse a oportunidade de resistir ou até fingir que resistia, ali estava eu, a ser convidado para conduzir uma dança que recordava vagamente dos meus primeiros tempos de faculdade. Dançámos junto da jukebox... e dançámos mais devagar do que um tango deve ser dançado, mas quem se ralava, estávamos ali, a jukebox e nós... pensámos que aquilo era o céu, pensámos que o tango nos aproximara mais em três segundos do que todas as palavras que estivéramos a lançar um ao outro... E depois aconteceu. Depois da música, ela manteve-se imóvel um segundo e, com a mão ainda na minha, quase como se numa brincadeira - disse Perdoname... "
 Esbocei um sorriso. ...
"... e ali mesmo começou a cantar as palavras em espanhol, e cantou-as para mim... com uma voz que rasgava tudo no meu interior, a olhar para mim como os cantores fazem quando nos deixam totalmente perturbados, e nós ali parados, nus e impotentes. E tudo o que temos é um eu abalado e lágrimas a caírem-nos pelas faces. E ela viu aquilo mas não deixou de cantar, como se soubesse, quando me começou a limpar os olhos com a palma da mão, que não havia nada de mais natural e era exactamente aquilo que devia acontecer quando um ser humano pára de dançar, nos segura na mão, e depois canta para nós, por nós, canta porque a música, como uma machadinha na selva, corta através de tudo e vai directamente àquele lugar ainda chamado coração."

As pessoas que iam no banco à minha frente olhavam-me com estranheza. "Coitada, a rir-se sozinha" pensavam. Quanto mais lia mais intensificava o sorriso, até provocar as covinhas na cara.  No fim destas palavras a música na rádio parou. Continuava a sorrir.
Pensei em ti, claro, em quem mais?


@"Oito noites brancas" de André Aciman

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