quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Sinto como se fosse meu







"Dói tanto ter que sofrer. Dói tanto saber que é tão fácil não doer, que é tão fácil um sorriso aqui, outro sorriso ali. E continuar por entre a multidão de sorrisos como se fosse isso o que me estava destinado. Estou sempre tão perto da euforia como tão perto da morte. Não me interessa o que não tenha vertigem, o que não exija o medo de que seja demais. Se não for demais não me interessa, se não puder ser fatal não me serve. Sou o actor que não sabe o seu papel e que por isso vai desempenhando todos os papéis que encontra pelo caminho. Não sou o humorista nem o comovente, não sou o génio nem o imbecil, sou o homem que não sabe onde está e que por isso vai estando em todo o lado para estar em lado nenhum. Queria ser como os outros, pobres e felizes criaturas, a quem basta um posicionamento e têm tudo. Estão lá, nos seus cantinhos de felicidade possível, a viver os sorrisos possíveis. E tudo aquilo os preenche. Como queria ser assim, não querer mais do que o que tenho e sentir-me inteiro com as partes que vou tendo – com as partes que o mundo me vai dando. Mas tudo o que quero é o que não posso ter, tudo o que sinto é o que ainda tenho de sentir, tudo o que me ocupa é o que desesperadamente luto para conquistar. Nada me dá a vida como a própria vida, como doer todos os dias porque todos os dias quero mais de todos os dias. E não há dia nenhum em que me deite realizado, e sei que é isso que me impede de me deitar para o último dia. Queria ser feliz com pouco ou feliz com muito. Queria ser feliz com o que sou se soubesse eu o que sou. Dói tanto ter de sofrer, caralho. Dói tanto a vida toda pela frente e até dói tanto a vida toda para trás. Dói tanto doer quem me ama por me doer assim, por me doer estupidamente assim. Queria deixar de ser eu por momentos mesmo que nunca consiga, na verdade, ser eu. Sou uma espécie de mim, uma simulação de mim, uma personagem de mim. Sou o exacto oposto do que quero ser. E ainda assim o apenas que só gostava de viver. Dói tanto esta merda desta vida e é também por isso que a amo tanto.









in "O Livro dos Loucos", de Pedro Chagas Freitas

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